Antes de participar da solenidade que lhe concedeu o título de doutora honoris causa, Conceição Evaristo concedeu entrevista coletiva à imprensa na Livraria da Ufes, no campus de Goiabeiras. Ela falou sobre lembranças de quando veio pela primeira vez ao Espírito Santo e o simbolismo do retorno ao estado em outra condição, o conceito de escrevivência, o poder da literatura e uma nova obra que está produzindo. Confira alguns trechos da entrevista.
Volta ao Espírito Santo
“Voltar aqui é voltar para brigar por vocês, com vocês e para vocês. Eu volto pelo caminho traçado na literatura, e, para uma mulher negra, isso significa muito. Vindo para cá, me voltou à memória quando eu estava ainda fazendo o curso normal, tinha meus 19 ou 20 anos. Nesse mesmo momento, eu estava vivendo o processo de desfavelamento na favela onde eu morava. E tinha uma família que precisava de alguém para vir com ela para o Espírito Santo para ajudar [nos afazeres,] nas férias. Aí, junto a essa família, veio também uma jovem que era cozinheira e eu, que era camareira. Ficamos na praia de Marataízes. Era uma família rica de Belo Horizonte e eu me lembro que, na casa dessa família, não tinha banheiro para que a menina e eu usássemos. Na praia, tinham umas plantas espinhosas na areia. Quando a necessidade era urgente, a menina e eu tínhamos de ir até à praia, uma praia deserta, porque nós não tínhamos banheiro. Isso me voltou à cabeça hoje. Então, vir aqui hoje, nessa outra condição, é muito significativo em termos pessoais. É uma outra história, um outro lado da história. Mas isso também me coloca no coletivo, porque sei que foi uma luta do povo negro, das mulheres negras”.
Cotas
“Em 1935, Abdias do Nascimento [ator, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras brasileiras], já pedia ao Estado brasileiro que oferecesse bolsas de estudo para os descendentes de africanos. Ele falava das cotas, não tinha esse nome, mas ele falava das ações afirmativas [...]. É um processo que não acontece de uma hora para outra. Tem o amadurecimento da própria sociedade, tem o amadurecimento das instituições. Fico muito feliz, mas reconheço que não chegaria aqui só com a força do meu trabalho. Eu só quero que isso não se encerre aqui, que outras pessoas negras, indígenas, possam também serem reconhecidas com esse título".
Escrevivência
"A escrevivência é um conceito que nasce dentro da literatura, mas extrapola esse campo para as outras áreas do conhecimento. É um conceito que abre para um sentido das classes dominadas, da história que não foi contada, da literatura – uma literatura a partir de uma autoria –, das pessoas que sempre foram subjugadas estarem podendo contar suas histórias. O conceito está ganhando um campo de pesquisa, de conhecimento, porque, de certa forma, desloca um processo de criação das teses, das dissertações e das monografias. É sempre colocado que o pesquisador tem que ter uma distância do objeto pesquisado para ele poder, dentro de uma certa neutralidade, produzir. Não é bem isso, porque cada pessoa que escolhe um objeto de pesquisa não o escolhe na inocência, não sorteia. Há um desejo anterior que move a sua escolha. Além de nascer de uma experiência de uma escritora negra e de uma pensadora, de uma pesquisadora negra, a escrevivência, como conceito, traz uma origem que se distingue de outros conceitos. A nossa escrevivência não é para adormecer os da casa grande, e sim para acordá-los dos seus sonhos injustos".

Literatura salva
A literatura pode salvar as pessoas sem ter essa intenção. A literatura não é um discurso que está comprometido com fé religiosa ou estatística, não é um discurso que tenha a pretensão de apontar certezas históricas. Então, eu acho que é justamente essa liberdade do campo ficcional que comove e convoca as pessoas. Acho que esse poder humanizador da literatura salva, cria consciências.
Nova obra
Estou escrevendo um romance que se chama Flores de Mulungu. Há uma matriarca – a [personagem] principal –, e a comunidade vai comemorar seu aniversário. Mas ela não quer e diz “eu só quero flores de mulungu”. Na verdade, é um pouco essa ideia da diáspora. É como se fosse uma mulher muito velha: a festa de aniversário dela seria justamente reunir os seus filhos, que estão espalhados pelo mundo. Esse romance está sendo elaborado aos poucos.
América Latina
“Nós, brasileiros, conhecemos pouco da América Latina. Nós conhecemos muito mais a Europa, os Estados Unidos; só recentemente nossa bibliografia em cursos acadêmicos passou a trazer uma quantidade maior de teóricos e pensadores latinos – na maioria das vezes eram europeus ou americanos. Então, eu acho que pensar o Rio como capital do livro [em alusão à decisão da Unesco de dar ao Rio de Janeiro o título de Capital Mundial do Livro de 2025], da leitura, com certeza também vai trazer esse diálogo com a América Latina”.
Ditadura
“Conheci a ditadura. Eu era de um movimento católico, a Juventude Operária Católica, em Belo Horizonte. Então, muita coisa acabou espirrando também sobre nós. E eu vejo, nesse momento, essa coincidência [da cassação de títulos honoris causa concedidos a ex-presidentes do período militar e da concessão do título a ela]. É muito simbólico que uma mulher negra, fazendo literatura, e que conheceu também a ditadura, esteja, num momento como esse, sendo reverenciada; enquanto outros que sempre estiveram no poder, e estiveram através da força, perderam o título”.
Sobre a escritora
Maria Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 29 novembro de 1946. Viveu seus primeiros anos na favela de Pindura Saia, uma comunidade extinta na década de 1970, localizada na zona sul da capital mineira.
Conciliava os estudos do curso normal com o trabalho como empregada doméstica. Concluiu o curso em 1971, aos 25 anos, e em 1975 passou em concurso público para o magistério, permanecendo no ofício até o ano de 2006. Cursou Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), formando-se no ano de 1990. Nos anos seguintes cursou mestrado em Letras-Literatura Brasileira na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) e doutorado em Letras e Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense (UFF), concluindo os estudos em 2011. Após seu doutoramento, atuou como professora em diversas instituições de ensino superior.
Iniciou sua trajetória literária em 1990, com obras publicadas na série Cadernos Negros. Seguiu-se vasta produção, sempre com a presença de questões relacionadas às desigualdades sociais, à diversidade e às perspectivas de empoderamento da mulher negra a partir das suas vivências e experiências, advinda daí a criação de uma nova abordagem metodológica: a "escrevivência".
Desde 2021, a escritora tem sido uma das autoras cujas obras constam no ranking das mais vendidas do Brasil e em outras partes do mundo. São inúmeras as publicações e prêmios recebidos por ela, dentre eles, o Prêmio Jabuti, de 2015, concedido ao livro Olhos d'Água.
Fotos: Ana Cristina Oggioni