Detentos do regime semiaberto recebem certificado pela participação em laboratório de criação em gravura

26/08/2025 - 17:51  •  Atualizado 28/08/2025 16:28
Texto: Tatiana Moura     Edição: Thereza Marinho
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Foto das obras expostas no Museu

Dezenove detentos do regime semiaberto da Penitenciária Semiaberta de Cariacica (PSC) foram certificados nesta segunda-feira, 23, pela participação no projeto de extensão Desvios: Laboratório de Criação em Gravura. A certificação foi concedida pela Ufes e pela Secretaria de Estado da Justiça (Sejus), e as obras produzidas estão em exposição na biblioteca do Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo (Maes) até o dia 17 de outubro. A visitação é gratuita.

O projeto nasceu a partir da ausência de documento de identidade por parte dos detentos, o que trouxe aos professores Rafael Pagatini e Larissa Zanin e aos estudantes Gabriel Schulz e Victor Serres, do Departamento de Artes Visuais da Ufes, e ao professor Pablo Ornelas Rosa, da Universidade de Vila Velha, uma série de reflexões acerca do lugar que o sujeito em privação de liberdade ocupa na sociedade.

Os traçados dos participantes, que inicialmente eram tímidos e inconstantes, aos poucos ganharam força em linhas robustas e precisas, formando a projeção dos próprios rostos e construindo identidades possíveis. Assim nasceram os autorretratos que compõem a exposição do projeto.

O reitor da Ufes, Eustáquio de Castro, ressaltou a relevância da iniciativa: “Hoje é um dia especial para nós, por estar presidindo essa formação especial dada pela nossa universidade. Esse projeto é extremamente impactante, não só do ponto de vista da capacitação, mas da interação. O que nós esperamos agora, é ver vocês na Ufes. Temos vários reeducandos que trabalham em projetos conosco lá, outros fazendo graduação na Universidade. As oportunidades, a Ufes oferece, ela está à disposição de vocês”.

O subsecretário de Ressocialização da Secretaria de Estado da Justiça (Sejus), Marcelo Gouvea, afirmou que a ressocialização passa por alguns pilares, como trabalho, educação e profissionalização. Ele também destacou que o maior benefício do projeto está na convivência construída. “Pode ser que muitos não saiam daqui artistas. Mas a grande importância disso é a convivência, é se relacionar, aprender a conviver. Todo que estão aqui hoje têm uma história, cada um sabe do seu caminho e sabe também onde errou. Cabe a nós fazer com que a transição de vocês aqui seja de transformação: que vocês entrem, reconheçam seus erros e saiam daqui em condições melhores”, disse.

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Foto de uma das aulas do projeto com os detentos, de costas, ouvindo a explicação dos professores
Oficina com os professores Rafael Pagatini e Pablo Ornelas Rosa

Resgate da identidade

A professora Larissa Zanin, uma das coordenadoras do projeto, lembra que a própria dinâmica do sistema prisional exclui toda e qualquer individualidade do sujeito. “Não é permitida a posse de objetos individuais personalizados. Dentro das unidades, todos utilizam o mesmo uniforme, chinelo, corte de cabelo e itens de higiene pessoal. No cotidiano da prisão, nenhum interno é chamado pelo nome, todos são identificados como ‘presos’. A chamada nominal só acontece nos momentos de conferência das celas”, afirma.

Diante desse cenário e após leituras sobre o sistema e a cultura prisional, compreende-se que o aprisionamento impacta profundamente a subjetividade constituída ao longo da vida de cada sujeito preso. E, ao mesmo tempo, junto a este processo de desindividualização, surge um novo ciclo de subjetivação, uma nova constituição identitária, que vêm da perda parcial ou total de consciência de si.

A partir dessa compreensão, foi elaborada a primeira proposta de trabalho: a produção de autorretratos e reflexões sobre os modos de se ver, antes e depois da passagem pelo sistema prisional. As oficinas de xilogravuras aconteceram no decorrer do primeiro semestre deste ano, a partir da pergunta: “Como me vejo e como quero ser visto?”.

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Foto do exercício de desenho de autorretrato utilizando espelho
Exercício de desenho de autorretrato utilizando espelho

Espelho

Os participantes da ação receberam espelhos para que se olhassem atentamente, e o momento foi de grande euforia, pois não existem espelhos dentro do cárcere. “Percebemos que muitos não conseguiram se observar por muito tempo, havia uma espécie de timidez e estranhamento. Outros se recusaram a se olhar, como se temessem a imagem que encontrariam”, relembra a professora.

Após a etapa inicial de auto-observação e exploração de possíveis formas de se observar, foi iniciada a segunda fase, dedicada à realização de desenhos. Para Zanin, ao criar espaços de escuta, expressão e criação dentro da unidade prisional, o projeto não apenas busca romper com a lógica punitiva e disciplinadora presente no cotidiano do cárcere, mas afirma a arte como território de reinvenção do sensível, onde o sujeito pode voltar a se ver, a se reconhecer e a projetar novos modos de existência.

“Ao promover oficinas que estimulam a autorrepresentação, a imaginação e a elaboração de experiências afetivas, o projeto busca tensionar a desindividualização imposta pelo sistema prisional e propõe brechas para a emergência de outras visualidades”, avalia.

O interno R. participou das oficinas e falou sobre a experiência. “Para mim, foi um privilégio poder participar do projeto. Pude aprender muitas técnicas de desenho, mas, além disso, ao ver meu autorretrato, pude olhar para dentro de mim, refletir sobre meus defeitos, qualidades e ações e tenho certeza que hoje sou uma pessoa diferente”, disse*.

O projeto prevê a realização de duas novas turmas. A iniciativa conta com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes), por meio do edital universal de Extensão II, e apoio institucional da Sejus, do Ministério Público Estadual (MPE/ES) e do Maes.

*Depoimento colhido pela Assessoria de Comunicação da Sejus.

Fotos: Ana Beatriz Fonseca e acervo do projeto (oficinas)

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